Exéquias

     Na véspera, logo de  tardezinha, cinco horas mais ou menos, senti um movimento esquisito em minha casa; muito desespero e uma dor terrivel no meu peito. Todos que me ajudar e eu não entendendo o porquê de tamanha correria. Achando que nada daquilo era comigo, tentei me levantar. Impossível, todo o meu físico estava inerte. Além do meu pensamento nada mais funcionava. Isso que dizer que eu permanecia vivo apesar de morto. Agora, quem imperava era meu espírito.
     Vocês não imaginam como é complicado ver, ouvir, conversar, sem ser visto, ouvido e sem ser percebido. Notei então quanta falta faz em casa um médium.
     Já cheguei desencarnado ao hospital. Tudo o que foi feito presenciei desanimado. Agradeço todo o esforço desenolvido para que meu coração continuasse sua cadência militarmente repetida por mais de sessenta e dois anos. Coitado, ele também não entendia porque tanto choque e tranco.
     Inteligentes, ele, o fígado, os pulmões, o estômago, os rins, o pâncreas, os intestinos, acompanhados pelo cérebro já haviam "deposto armas", sabendo que nada mais me ressuscitaria e que o fim todos seria o mesmo: manjar para os vermes.
     Nu, lavaram-me com água fria. Trocaram-me de roupa e meu cunhado, um "pão-duro" de marca maior, achou que eu não precisava de gravata e, descaradamente, levou todas elas para sua casa. Sempre as achou muito bonitas.
     Um dos presentes ao "preparo" do corpo, sabendo o quanto eu era sãopaulino, propôs vestir-me com a camisa do meu time predileto. Após alguns olhares interogativos resolveu-se não adotar tal ideia, isto poderia provocar os torcedores dos demais clubes.
     Caso cada um viesse ao enterro, e só para perturbar, vestisse a camisa de seu clube, ao invés de exéquias tudo aquilo poderia parecer um "torneio início".
     Quando me colocaram dentro do caixão pude ver que, além do defunto, não há espaço para mais nada. Não há chance para tudo que pensava que era meu quando encarnado.
     No velório, durante a noite, somente não fiquei sozinho porque o guarda do local apagou as luzes e dormiu sentado em uma cadeira na sala ao lado. Fazia muito frio e minha família resolveu que ninguém deveria ficar de vigília.
    Na manhã seguinte, dia do enterro, começaram a chegar os amigos, parentes e vizinhos. Alguns me olhavam e se admiravam de minha brancura. Outros sequer me olharam, sabendo que não seriam premiados com um olhar meu.
     Cara de tristeza, não vi nenhuma. De alegria, muito menos.Nada de herança.
     Ali deitado, inerte, senti-me como um monumento homenageando o nada. Não sei porque não me enterraram logo de manhã, mas sim à tarde. Até cheguei a pensar que todos estavam achando que era fingimento meu e, quando a fome apertasse, com certeza voltaria à vida.
     Fiquei alucinado quando três senhoras e um cavalheiro chegaram ao meu velório gritando, chorando, descabelados, passando as mãos no meu rosto, apertando minhas mãos, sem que ninguém fizesse algo para livrar-me daquele suplício.
     Erraram de defunto, percebendo isso pelas pessoas desconhecidas que os observavam de forma estranha.
     No transporte do corpo do velório ao cemitério, o carro fúnebre quebou; o resto do transporte foi feito no muque. Pude perceber que verdadeiros amigos não eral tão verdadeiros assim. Concordo que um quilômetro não é muito pouco, mas anizade é amizade. Ou não é?
     Na entrada do cemitério um dos elementos da frente, dos que carregavam o caixão, tropeçou e tudo foi ao chão, abrindo rachaduras na madeira do esquife.
     O mesmo indivíduo que caiu na entrada do cemitério, aabou pisando no caixote de reboco, causando novos distúrbios.
     Dentro do túmulo, olhando pelas frestas das rachaduras do caixão via a parede se fechando, tijolo a tijolo, e ouvi o pedreiro de cemitério mais famoso de nossa terra, Wando, dizer claramente:
    - Eta enterro de morte !

N.A.: Waldir Roncato ( Rio das Pedras, 10-12-1936/27-08-2011)  filho de Auredice Maciel Roncato ( Dona Óris) e Antonio Roberto Roncato ( Toninho Roncato), fez o curso primário no G.E. "Barão de Serra Negra". Casou-se com Margarida Lacava Roncato ( do lar) com quem teve dois filhos; Wandmar César Roncato ( bancário) e Walma Roncato Arruda ( fonoaudióloga). São seus netos: Natália Cortelazzi Roncato, Rubens Cortelazzi Roncato, Bruno Roncato Arruda e Murilo Roncato Arruda.
Waldir Roncato, o Wando, exerceu a santa profissão de pedreiro de cemitério durante sessenta anos, participando ativamente do enterro de centenas e centenas de riopedrenses. Rio das Pedras agradece e pede a Deus que o abençoe.

Setembro de 2015

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