Toda hora é hora

     Grande cirurgião, famoso internacionalmente, muito competente, simpático, educado, era o tipo ideal para se conhecer e sustentar uma amizade. 
     Bem casado, tinha um filho, o único, que era sua maior alegria e a quem dedicava a maior atenção. Dizia sempre que o filho teria caminho livre para escolher sua profissão, de maneira alguma o influenciaria para uma carreira, nem mesmo a de médico. Qualquer que fosse a escolha do filho, ele teria todo o seu apoio. 
     Operava dois ou três dias por semana, sempre pela manhã ou à tarde, e de maneira alguma durante a noite. Os hospitais e médicos, sabendo de sua intransigência, jamais o convocavam para o serviço noturno. Chamavam profissionais de outras cidades na hipótese de casos considerados graves e inadiáveis. 
     Durante os períodos da manhã e da tarde ele não se furtava de nenhuma tarefa, independentemente de distância, da gravidade do caso ou até mesmo de receber ou não pelos serviços prestados. Era muito querido e estimado por colegas e clientes. Ninguém entendia aquela mania. 
     Havia comentários de todos os tipos com referência a sua negativa de trabalhar à noite: enxergava mal, já estaria cansado, era supersticioso, etc. Mas ele mesmo dizia que agia dessa forma porque gostava de ficar em casa nesse período com a esposa e o filho, analisando operações realizadas durante o dia, lendo e se aperfeiçoando, pesquisando, e por aí a fora. Depois que passou a se dedicar à cirurgia geral, adquirindo nome e fama, isso há mais de vinte e cinco anos, jamais recebeu ou atendeu chamadas noturnas. Diziam que não trabalhava à noite porque, cansado, não poderia produzir dentro de sua real capacidade. Outra hipótese. 
     Quase três horas da madrugada, a campainha soa nervosa e insistentemente, falatório na porta de entrada, clima de nervosismo, até que o famoso médico, devidamente agasalhado, aparece e pergunta qual o motivo de tanta agitação. Obtém a resposta de um policial seu conhecido : “ Houve um desastre sério, um ônibus foi atropelado pelo trem da madrugada e vários feridos estão em estado desesperador e há várias cirurgias a serem feitas !” 
     O policial, sabendo da maneira de ser daquele médico, falou tudo o que tinha para falar e esperou, sem ânimo algum, pela resposta. Informou que os médicos da cidade não venciam atender a todos os feridos e os médicos das cidades vizinhas não chegariam a tempo. Era um caso de misericórdia. 
     Chegando ao hospital o médico constatou que o paciente, já na mesa de operação, pronto para ser operado, era o que corria maior perigo e poderia não suportar por mais tempo tanto sofrimento. Toda a dedicação e todo o conhecimento do médico vieram à tona e, por mais de quatro horas, operou-se, colocaram-se pinos, costuraram- se cortes naquele corpo jovem mas bastante maltratado pelo desastre. 
     Depois de tudo terminado o médico soube que havia salvado o filho de seu pior inimigo político. Calmamente sorriu, pensando em seu filho. 
     No dia seguinte outra placa foi colocada ao lado da placa antiga, na entrada de sua casa, com os seguintes dizeres: “Atende-se a qualquer hora” 
 

Novembro de 2009
Nota do Autor: Conto de pura ficção.

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