Perda de Tempo
Véspera de
Natal, quatro horas da tarde. A família toda, pais e um casal de
filhos adolescentes, acomodada dentro do carro com destino à
fazenda dos tios, a mais ou menos 340 quilômetros de distância;
os últimos quarenta quilômetros, de estrada de terra. Deveriam
chegar por volta de vinte e uma horas.
O dia todo esteve
encoberto e, com toda certeza, viajariam com chuva em alguns trechos da
viagem. O marido, médio empresário, demonstrava toda sua
alegria contando aos outros viajantes os lucros obtidos no ano. Ano
maravilhoso para ele pois, além dos lucros diretos, dispensara vinte
empregados, diminuindo as despesas.
Era bom pai e bom
marido, mas autoritário e egoísta demais com respeito a seus
assalariados. Tratava-os com arrogância, sem dar-lhes ouvido.
Com relação
à firma, aos negócios e aos interesses de seus comandados,
seu coração era duro e impenetrável. Pelos lucros,
passava por cima de tudo e de todos.
A esposa perguntou
se aqueles empregados dispensados não iriam passar necessidades,
se não poderiam permanecer na empresa, mesmo que o lucro diminuísse
um pouco. Com certeza, eles passariam um Natal triste e um início
de ano inseguro. Ela disse isso tudo olhando fixamente para o marido. Contente,
olhando cinicamente para a estrada, ele não deu resposta.
Carro novo, a viagem
corria tranqüila, até que os primeiros pingos de chuva se apresentaram
e veio à mente de todos o trecho de quarenta quilômetros de
terra, apesar de que apenas os vinte intermediários é que
eram realmente difíceis, devido a algumas subidas e descidas e à
falta de pedregulhos.
Às vinte horas,
aproximadamente, eles saíram do asfalto. Nada de faixas, nenhuma
sinalização, muitos buracos e poças, enfim, um trecho
de fazer suar até os mais calmos e indiferentes. Chovia copiosamente.
Faltando pouco mais
de vinte e cinco quilômetros para a família chegar ao seu
destino, o carro derrapou e deslisou até um barranco à
direita, atolando e fazendo travar a porta do passageiro.
Esperaram a chuva
passar, saíram do carro, todos pelo lado do motorista. Viram-se
perdidos, tal era a escuridão. Entre um relâmpago e outro
divisaram um casebre no meio do pasto, à direita. Dez minutos de
caminhada e já se aproximavam da casa quando alguém abriu
a porta e os convidou para entrar.
Claro que eles entraram,
pois nova tempestade se desenhava e ninguém desejava ficar
todo molhado. Surpresa para os quatro: a casa possuía somente um
cômodo que servia de sala, quarto e cozinha, mas de uma limpeza de
fazer inveja. Roupas simples mas limpas, poucas panelas, mas brilhando.
O fogão, à lenha, impecável, esquentava um caldeirão
com uma sopa leve e apetitosa, que tomaram. Entreolharam-se admirados.
Perceberam que o
homem possuía sorriso e olhar encantadores e convincentes, somente
quando voltou do quintal, sem agasalho e sem chapéu, puxando um
par de mulas e carregando um cesto com frutas.
As mulas, para levar
o carro até lugar seguro da estrada, caso eles não desejassem
passar a noite ali. As frutas eram o presente único, de Natal, que
ele podia oferecer aos visitantes.
Aquelas duas horas
voaram, havia um bem-estar geral que fez a chuva, a estrada, as poças
e os buracos ficarem praticamente esquecidos. O resto da viagem foi tão
calmo que se esqueceram até de contar o “acidente “ para os parentes.
Durante o almoço
de Natal toda a história da noite anterior veio à baila.
Os parentes ouviram tudo atentamente, uns olhando para os outros, achando
tudo muito esquisito, até que um dos tios disse :
- Nesse trecho da estrada não mora
ninguém!
Houve alguma discussão
e resolveu-se ir até o lugar onde o carro atolara a fim de procurar
o tal homem.
Realmente havia as
marcas do deslisamento na estrada e o estrago feito no barranco. Mostraram
o local da cerca por onde passaram para chegar até a casa.
Todos repetiram o
trajeto mas não encontraram nenhum pasto e muito menos o casebre.
Apenas muitas e muitas árvores frutíferas por entre o arvoredo
todo.
Os quatro teriam
dormido e sonhado o mesmo sonho ? Impossível ! - Impossível
!, declararam todos.
Quietos, todos voltaram
para casa e, quando chegaram, o empresário olhou para todos e disse
não ter entendido nada.
Sua esposa, com um
sorriso leve, olhar doce, apoiando o rosto na concha da mão esquerda,
tendo entendido tudo, com os olhos úmidos e o coração
em paz, disse baixinho para si mesma:
- Deus perdeu tempo mais uma vez...
Natal de 2005
N . A . : Sem fé o homem é
vazio, intolerante, frágil, porque falta-lhe a pilastra principal:
a crença que justifica e dá razão à própria
vida .
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